segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Renata Meirelles: O tempo da floresta



“Na Amazônia, tanto as crianças como os adultos se sentem como partes integrantes do ambiente. A natureza não é um cenário. Eles são a natureza.”


A paulistana Renata Meirelles é educadora e já percorreu o Brasil investigando brincares de todas as regiões. Em parceria com o documentarista David Reeks, ela criou o Projeto Bira (Brincadeiras Infantis da Região Amazônica) e passou dez meses brincando com crianças de comunidades indígenas e ribeirinhas no Pará, Amapá, Amazonas, Roraima e Acre, lugares onde o corpo é o brinquedo, e a floresta imprime ritmo próprio à vida das pessoas.
Como é o brincar na Amazônia?
Acho que a primeira característica é que lá as crianças têm o tempo e o espaço para brincar. Outro elemento, que é um tanto óbvio, é o fato de que a natureza está ali disponível em todos os aspectos para as crianças explorarem. A brincadeira começa fazendo coisas do universo adulto como caçar, pescar, fazer farinha. Eles brincam "de verdade" e podem passar até oito horas por dia em uma pescaria, se divertindo. Isso acontece também porque eles têm uma relação com o tempo muito diferente do das crianças das cidades. O tempo da floresta é o tempo da experiência. Por isso as crianças permanecem muito mais tempo em uma atividade.
Qual é a importância que se dá ao brinquedo?

Construir brinquedos na floresta é uma parte muito importante do brincar. Mas a ideia é fazer o brinquedo para deixá-lo vivo, não para guardá-lo. Em uma comunidade indígena dos wapixanas, em Roraima, construímos um pião feito da semente do tucumã com as crianças. Passamos uma tarde inteira brincando, porque é um pião difícil de fazer.
No dia seguinte eu passei pelo local onde estávamos e percebi que um dos piões ficou no chão, estava sujo. Fui atrás do dono para devolver o brinquedo, e ele me disse: "Renata, a brincadeira acabou". Lá a brincadeira começa sempre pelo início: fazer o brinquedo para depois brincar com ele.
Como é a transmissão do repertório de brincadeiras?
Isso ocorre silenciosamente, fazendo junto sem precisar dar explicações ou regras, mas tentando e aprendendo dentro da própria brincadeira.
Que jogos você encontrou na Amazônia?
Existe o jogo da onça, que é muito popular entre as comunidades. Outro jogo muito presente entre eles é o dominó, que todos jogam o tempo inteiro. No caso do jogo da onça, o que eles costumam fazer é riscar o tabuleiro no chão de madeira das casas. Eles usam faquinhas para riscar, e o tabuleiro fica lá sempre. Se você tem vontade de jogar, é só sentar no chão, pegar umas sementes e começar.
Como é a relação das crianças na Amazônia com a água?
O melhor brinquedo da Amazônia é o rio. O poder da água é maior até que o da floresta, até porque, como chove muito, em vários momentos a floresta fica embaixo d'água. As crianças se jogam no rio o tempo inteiro e fazem um monte de brincadeiras: pega-pega, pular de árvore, barco, imitar peixe, pescar. Mantêm uma relação de respeito pela água, conhecem seus limites e não tentam desafiá-la, mas dialogam com ela. Uma vez, perguntei a uma menina quem a tinha ensinado a nadar tão rápido e bem. Ela me respondeu: "Ué, foram as águas aqui do igarapé!", como quem diz "é óbvio que eu converso com a águas, é assim que me relaciono com elas".
As crianças da cidade conseguem se relacionar com a natureza de modo semelhante?
É complicado, porque o contato profundo com a natureza não é só ir ao parque Ibirapuera ou plantar vasos na escola. Ele exige tempo para a exploração, para acompanhar os ciclos da natureza. Isso não é impossível nas cidades, mas naturalmente é mais difícil. Acho que as crianças, até os seis anos, deveriam passar o maior tempo possível na areia e na água. Eles se acalmam, estimulam a contemplação e a paciência. Você nunca vê uma criança eufórica na areia. Ela senta lá e devaneia, mergulhando em algo mais profundo. Fica muito mais concentrada no que está fazendo. O contato com a natureza é isso.
Qual é a importância do corpo nas brincadeiras da Amazônia?
Para eles, o corpo é o brinquedo. E eles o utilizam o dia inteiro e em tudo o que fazem. Lá, o corpo é muito livre, as crianças têm capacidades físicas muito amplas. Elas são fortes, robustas, flexíveis. O curioso é que elas têm menos medo de arriscar o corpo, mas medo do escuro, do boto, da cobra grande. Os limites delas são os seres mitológicos, o imaginário. Fisicamente, elas podem tudo.
O que há de semelhante entre as crianças das cidades no resto do Brasil e as da Amazônia?
Criança é criança em qualquer lugar do mundo. Por isso as buscas são as mesmas, só acontecem de um jeito um pouco diferente. Até no próprio repertório de brincadeiras isso fica claro. Encontrei brincadeiras de palmas, amarelinha e elástico exatamente como as que eu aprendi quando criança.
Quais são as buscas?
Por trás das brincadeiras que permanecem no tempo, existe o fato de que as crianças precisam brincar disso para se relacionar com algum aspecto humano. Essa é a busca: se relacionar com algo que é único do homem, ligar-se a algo comum a todos nós. É como se a camada mais profunda do ser humano, o rio que passa no fundo do homem, fosse o mesmo para todos. Cada um vai trazer isso à superfície -que seria a cultura- do seu jeito, com sua cantiga, seu gesto. Mas a fonte da qual bebemos é única.









Mais informações no site do Território do Brincar .

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